Escrevi este artigo de opinião em 20 de Março de 2013. Recomendo-o aos militantes do partido que, este fim de semana, realiza um congresso de costas voltadas para o povo português:
Cidadãos
de corpo inteiro
Embora
com outra roupagem, a política portuguesa continua a ser caracterizada pelo
caciquismo oitocentista, tão bem retratado em “A Queda de um Anjo” de Camilo
Castelo Branco, “A Morgadinha dos Canaviais” de Júlio Dinis, “O Senhor
Deputado” de Lourenço Pinto, “Uma Eleição Perdida” do Conde de Ficalho ou “A
Ilustre Casa de Ramires” de Eça de Queirós. Para a maioria da população, “a
actividade política era encarada como uma esfera à parte, algo exterior a si,
que não entendia e que não se sentia motivada a participar voluntariamente”,
tal como acontece ainda hoje em Portugal, se exceptuarmos alguns sobressaltos
reivindicativos.
“Eleições
e Caciquismo no Portugal Oitocentista (1868-1890)” de Pedro Tavares de Almeida e “Cidadania, Caciquismo e Poder (1890-1916)” de
Luís Vidigal, são duas obras que descrevem o comportamento político de
tipo clientelista-caciquista à época, afirmando o primeiro que, apesar de o
liberalismo “ter trazido consigo o princípio da soberania da nação e dos
mecanismos do governo representativo”, as elites governantes consideravam as
eleições “um instrumento de manipulação de jogos de poder”. A “invenção da
cidadania”, em que se reconhecia aos membros iguais de uma nação o direito de
governar através dos seus representantes livremente eleitos, era utilizada
pelas elites como “antídoto contra o descontentamento e o activismo
revolucionário, e como estratégia de integração nacional e da autoridade
territorial do Estado”.
É neste contexto que se assiste a “manifestações de
fraude, corrupção, dominação dos notáveis, clientelismo na mobilização e
controlo do voto, e uma intromissão abusiva do governo nas eleições”, podendo concluir-se
que a “cidadania” não passava de uma mera ficção jurídica e ideológica. Era o “cacique
proprietário” que, dada a sua “posição económica favorável, pergaminho
familiar, prestígio profissional, cultural e simbólico, mobilizava os votos e
consagrava as fidelidades”, tendo posteriormente emergido, com o alargamento da
máquina eleitoral ao interior do país, o “cacique burocrático”, bem posicionado
no aparelho do Estado e vocacionado para assegurar a ordem pública, “com base
numa vasta rede de lealdades e favores, submissão e ameaças de coacção”.
Em ano de eleições autárquicas, é tempo de passar da
ficção à realidade, de perceber que só uma verdadeira cidadania tirará o país da
miséria, de exigir um novo quadro legal que impeça o vicioso carreirismo-caciquismo
e promova a ética e o mérito político. É tempo, em suma, de os dirigentes
políticos optarem por ser líderes e não patrões ou amos, e de as pessoas perderem
o medo, endireitarem a espinha e levantarem o queixo, assumindo-se como
cidadãos de corpo inteiro.
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